Durante as jornadas que fizeram o Brasil explodir em protestos em 2013, a noite de 13 de junho ficou marcada como um grande ponto de inflexão.
A reação violenta da polícia durante o ato em São Paulo, que terminou com mais de 100 feridos, inflamou a população e massificou as manifestações em todo o Brasil.
Ao mesmo tempo em que o movimento cresceu, ele se transformou: a pauta passou da oposição ao aumento de R$ 0,20 na passagem de ônibus à insatisfação generalizada com os gastos para a Copa do Mundo de 2014, as denúncias de corrupção na política e o governo da então presidente Dilma Rousseff (PT).
E o mês de junho mudou o país para sempre.
Segundo especialistas em segurança pública e direitos humanos ouvidos pela BBC News Brasil, as ações tomadas pelas forças de segurança naquele dia 13 também influenciaram o modo de agir da polícia brasileira e “sistematizaram” a repressão policial a movimentos sociais nos últimos 10 anos.
Noite de violência e repressão
As primeiras manifestações das chamadas “Jornadas de Junho” ocorreram no dia 3 na Estrada do M’Boi Mirim, periferia de São Paulo, logo após o reajuste das tarifas do transporte público em São Paulo e Rio de Janeiro.
Os primeiros atos foram pequenos, mas já estiveram marcados pela presença forte das forças de segurança.
A resposta se tornou mais violenta depois de 6 e 7 de junho, quando foram registrados os primeiros grandes casos de depredação em estações de metrô e estabelecimentos públicos em São Paulo e confrontos no Rio de Janeiro.
O terceiro grande protesto na região central paulistana, em 11 de junho, atraiu 5 mil pessoas e foi marcado pelo uso de coquetéis molotov, paus e pedras por manifestantes encapuzados e desgarrados da massa principal contra agentes de segurança da Tropa de Choque da Polícia Militar.
A Polícia sempre negou qualquer exagero nas reações e afirmou usar a força de forma proporcional à necessidade para conter a violência.
No dia seguinte, o termo “black blocs” começa a aparecer na imprensa para descrever o grupo, ao lado de cobranças por uma ação mais enfática das forças de segurança para coibir o vandalismo.
O ato seguinte em São Paulo é o de 13 de junho. Um grande movimento de convocação é organizado pelas redes sociais e os manifestantes se concentram na região da Praça Ramos de Azevedo e do Theatro Municipal, no centro da cidade, no final da tarde.
O ato não tem uma liderança clara, mas naquele momento a organização estava ligada principalmente ao braço paulistano do Movimento Passe Livre (MPL), lançado em 2005 no Fórum Social Mundial em Porto Alegre.
Antes mesmo da marcha começar, PMs revistam todos que se dirigem à área.
Pessoas que carregavam vinagre ? usado para supostamente aliviar os efeitos do gás lacrimogêneo nos olhos ? são presas, incluindo um jornalista.
O protesto começou sem registros de ocorrências graves, mas quando os manifestantes foram impedidos de seguir até a Avenida Paulista começou o confronto.
Segundo a PM, o acordo era para que os manifestantes não subissem em direção à grande avenida, o que não foi cumprido.
As lideranças do movimento e os comandantes da polícia tentavam chegar a um acordo quando a violência se espalhou.
As forças de segurança usaram bombas de efeito moral e balas de borracha contra os ativistas, que responderam atirando objetos e rojões, pichando ônibus e incendiando restos de lixo.
Segundo relatos, a repressão atingiu não só os manifestantes mais violentos, mas também jornalistas, pedestres e motoristas que trafegavam na região. Lojas e restaurantes nas redondezas do ato ainda fecharam as portas mais cedo por medo de vandalismo.
Durante o conflito na região da Rua da Consolação, muitos manifestantes se dispersam pelas ruas dos bairros de Cerqueira César e Consolação na tentativa de chegar até a Paulista, bloqueada pela polícia. Grupos fazem barricadas e incendeiam objetos nas ruas Fernando de Albuquerque e Rego Freitas.
Mais para o fim da noite, a Paulista é liberada para carros e alguns manifestantes remanescentes conseguem chegar ao vão do Masp (Museu de Arte de São Paulo), de onde são retirados à base de golpes de cassetete pela PM.
Um pequeno grupo tenta iniciar uma passeata pela calçada, a uma quadra do museu, pedindo o “fim da violência”, que também é reprimida.
A noite termina com um total de 232 pessoas presas. Pelo menos 17 profissionais da imprensa ficaram feridos, entre eles o fotógrafo Sergio Silva, que perdeu a visão do olho esquerdo.
Ele afirma ter sido alvejado por uma bala de borracha, disparada por um policial militar – no início deste ano, a Justiça negou indenização ao jornalista, afirmando que não há provas, no processo, de que a lesão foi causada pela PM.
Na manhã seguinte, o então governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, defende a ação da polícia e chama os manifestantes de “baderneiros e vândalos”.
‘Ponto de inflexão’
Ao invés de dissuadir a participação nos protestos seguintes, a violenta repressão da polícia em 13 de junho acaba por alimentar a indignação popular e incentivar a participação nos atos.
Segundo o Datafolha, 6.500 pessoas foram à rua em São Paulo em 13 de junho. No dia 17, já eram 65.000. As manifestações que já ocorriam em outras cidades do Brasil, como Rio de Janeiro e Porto Alegre, também ganharam impulso, com novas reivindicações.
Após semanas de protestos, parte das capitais, inclusive São Paulo, anunciou a redução das tarifas. Na sequência, Dilma Rousseff fez pronunciamento na TV prometendo “pacto” com governadores e prefeitos para atender às demandas.
Com isso, a tensão diminuiu, mas um levantamento do Datafolha de julho de 2013 mostrava a ascensão da insatisfação popular: a porcentagem dos brasileiros que avaliavam o governo de Dilma como “bom ou ótimo” passou de 57% para 30% em três semanas.
“Reprimir, rezam estudiosos de movimentos sociais, ou dizima atos ou os inflama, atraindo solidariedade de mídia e cidadãos não mobilizados. Em 13 de junho, teve o segundo efeito”, afirma a socióloga e professora da Universidade de São Paulo (USP) Angela Alonso em artigo publicado na revista Novos Estudos.
Segundo ela, a resposta ao ato dos então prefeito e governador de São Paulo, Fernando Haddad e Geraldo Alckmin, que em um primeiro momento decidiram manter o valor da tarifa do transporte público, também atraiu mais participação no movimento.
“Interpretaram mal a conjuntura, que os pegaria de rebote. A mobilização mudava de escala.”
“É inegável que o dia 13 destravou uma discussão que se espalhou pelo país todo. Talvez tenha sido assim justamente porque houve uma triangulação entre os manifestantes, a violência da polícia e a resposta da imprensa, que em um primeiro momento condenou os protestos, mas depois passou a criticar a repressão”, diz Acácio Augusto, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Para o sociólogo Breno Bringel, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), 13 de junho foi um “dia chave” para as Jornadas de Junho.
“Foi um ponto de inflexão, pois a partir da onda de indignação e solidariedade gerada pela repressão os protestos se difundiram para outras cidades com mais força e mais pessoas aderiram ao movimento, inclusive pessoas que não estavam acostumadas a sair às ruas”, diz.
A partir daí, segundo Bringel, a explosão de manifestações permitiu “uma grande abertura societária do Brasil” que levou a fortes críticas ao sistema político tradicional, ao PT – que estava no governo federal na época – e aos políticos que estavam no poder naquele momento.
“Foi uma oportunidade para se repensar os rumos do país, só não se sabia na época quais seriam esses rumos.”
Nos anos seguintes a 2013, o Brasil viveu o ápice da operação Lava Jato, impeachment da presidente Dilma Rousseff, ascensão de uma direita radical, eleição presidencial de Jair Bolsonaro e o fortalecimento de movimentos antidemocráticos que culminaram na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes em janeiro.
No meio tempo, Luiz Inácio Lula da Silva foi condenado, preso, solto, recuperou seus direitos políticos e foi eleito pela terceira vez para comandar o país.
Acadêmicos que pesquisam os protestos e seus desdobramentos afirmam não ser possível traçar uma linearidade causal entre todos esses eventos, como se o turbilhão que tomou as ruas há dez anos tivesse, por exemplo, gestado a nova direita brasileira, causando assim a derrubada do governo petista e abrindo caminho para o bolsonarismo.
Por outro lado, apontam junho como um momento de inflexão na história, em que uma série de insatisfações e movimentos de reivindicações que vinham fermentando nos anos anteriores eclodiram e ganharam visibilidade.
“Os legados de junho de 2013 foram apropriados por atores mais à direita e levaram a um fortalecimento na sociedade, cultura e política de agentes que posteriormente construíram o processo de impeachment (contra Dilma Rousseff)”, explica Bringel.
“Mas também não podemos dizer que os protestos foram os grandes responsáveis pela criação do bolsonarismo, por exemplo. Outros muitos fatores influenciaram esse fenômeno.”
Para o sociólogo Marcos Rolim, professor universitário e membro fundador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), muito possivelmente “não teríamos as Jornadas de Junho, com a dimensão que as manifestações tomaram em todo o país, sem a violência despropositada da PM de São Paulo” em 13 de junho.
Segundo o especialista, o descontentamento popular com a ausência de serviços públicos de qualidade iria emergir de um modo ou de outro, mas muito provavelmente não teríamos tido protestos tão amplos não fosse a resposta violenta das forças de segurança e do Estado.
“Esse episódio deixou algumas lições e penso que a primeira delas é a de que intervenções policiais violentas contra as manifestações populares costumam fortalecer os movimentos, porque despertam um sentimento de injustiça em segmentos até então não mobilizados e porque as imagens da repressão tendem a alterar a opinião pública, agregando simpatia às vítimas e as suas causas”, diz.
‘Sistematização da repressão’
A forma como as forças de segurança reagiram aos protestos do dia 13 de junho também estabeleceu padrões para a ação da polícia nos últimos 10 anos, diz Acácio Augusto, que coordena o Laboratório de Análise em Segurança Internacional e Tecnologias de Monitoramento da Unifesp.
Segundo o pesquisador, os agentes de várias cidades do Brasil já vinham recebendo treinamentos especiais baseados em conhecimentos estrangeiros há algum tempo, como forma de preparação para os megaeventos esportivos sediados pelo país, a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas do Rio em 2016.
“Mas foi só a partir de junho, e especialmente do dia 13, que a polícia colocou esse treinamento para funcionar”, diz. “Depois disso a violência da polícia só aumentou e se sistematizou.”
Augusto explica que algumas técnicas de repressão e resposta a protestos foram experimentadas pela primeira vez naquela noite e depois passaram a ser usadas com frequência não só pela polícia em São Paulo, como em outras cidades.
É o caso da tática conhecida como Chaleira de Hamburgo, que consiste no isolamento de uma parte dos manifestantes com cordão policial, ou do uso do que a imprensa apelidou de “Tropa do Braço”, um grupo de mais de 100 policiais especializados em artes-marciais, principalmente jiu-jitsu.
Esse mesmo tipo de tática seria empregado, de acordo com Augusto, para manifestações semelhantes nos anos seguintes, como os protestos dos secundaristas contra a reorganização escolar, em São Paulo, em 2016
“A partir daí a polícia passa a ser sistematicamente mais violenta, não só em manifestações populares mas também em outras ações. De 2013 para cá o que não faltam são casos de pessoas sufocadas, imobilizadas com golpes de arte marcial.”
Segundo o pesquisador, o estoque de equipamentos usados pela polícia também cresce a partir daquele momento, com a compra de novos e mais modernos tipos de bala de borracha e gás lacrimogêneo.
E se em um primeiro momento a repressão agressiva produziu mais agitação social que massificou os atos em todo o Brasil, a longo prazo desmobilizou e enfraqueceu alguns ativistas e movimentos sociais, segundo os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
“A polarização decorrente de Junho de 2013 tirou da cena política alguns dos movimentos sociais mais críticos e autônomos que atuaram nos atos”, afirma Breno Bringel.
Segundo o especialista, muitos ativistas ficaram traumatizados ou impossibilitados de continuar seu trabalho por conta de processos criminais decorrentes de suas ações nos protestos.
“No médio prazo, a repressão levou a uma desmobilização principalmente de ativistas mais ligados à esquerda. Eles foram as principais vítimas.”
Para Marcos Rolim, a repressão aos protestos se deu também por meio de novas estratégias de investigação mobilizadas pelas polícias civis para enquadrar pessoas que participavam dos protestos e pela produção legislativa da época que ofereceu ao Estado um novo repertório de persecução criminal.
“Esse é, particularmente o caso, da Lei 12.850 de agosto de 2013, sancionada pela presidenta Dilma, a chamada ‘Lei das Organizações Criminosas'”, diz o sociólogo.
“Essas novas estratégias repressivas passaram a colocar aos movimentos sociais novos desafios para a proteção dos seus membros, o que inclui, entre outros temas, formas inovadoras para o uso de recursos de comunicação e articulação online e mecanismos legítimos de autodefesa.”
Acácio Augusto afirma ainda que, em última instância, também é possível traçar uma relação entre a reação às manifestações de 2013 e a Lei Antiterrorismo de 2016.
“O efeito do dia 13 no aparato securitário no Brasil é muito significativo e se arrasta até a criação da legislação”, diz.
“A relação não é oficial, já que a principal impulsionadora da lei foi a ideia de que o Brasil precisava se tornar mais seguro para receber grandes eventos internacionais. Mas as manifestações certamente criaram uma narrativa favorável.”
Fonte G1 Brasília