O decreto do indulto de Natal do presidente Jair Bolsonaro (PL), publicado nesta sexta-feira (23) no Diário Oficial da União, pode perdoar as penas e extinguir as condenações dos policiais militares culpados na Justiça pelo caso conhecido como Massacre do Carandiru.
O g1 ouviu um procurador de Justiça, o promotor do caso e uma ONG de direitos humanos que confirmaram essa possibilidade e criticaram a decisão presidencial. A defesa dos agentes da Polícia Militar (PM) que foram condenados há época ainda não foi localizada.
Em 2 de outubro de 1992, 111 presos foram mortos durante invasão da Polícia Militar (PM) para conter rebelião no Pavilhão 9 da Casa de Detenção.
Segundo o decreto deste ano, estão perdoados agentes de forças de seguranças que foram condenados por crimes ocorridos há mais de 30 anos, mesmo que eles não tenham sido condenados em definitivo na última instância da Justiça:
“Busca-se conceder indulto, ademais, aos agentes públicos que integram, ou integravam há época do fato, os órgãos de segurança pública de que trata o art. 144 da Constituição e que, no exercício da sua função ou em decorrência dela, tenham sido condenados, ainda que provisoriamente, por fato praticado há mais de trinta anos, contados da data de publicação deste Decreto, e não considerado hediondo no momento de sua prática”, informa trecho do decreto feito por Bolsonaro.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) marcou para às 10h do dia 31 de janeiro de 2023 a retomada do julgamento que pode decretar as prisões dos policiais militares condenados pelo caso que ficou conhecido como Massacre do Carandiru. A informações foi confirmada nesta quarta-feira (23) pela assessoria de imprensa do TJ-SP.
A 4ª Câmara Criminal do TJ-SP suspendeu o julgamento virtual do caso na terça-feira (22), quando analisava o último recurso da defesa dos PMs que faltava ser julgado: o que trata das reduções das penas dos réus.
O procurador Maurício Antonio Ribeiro Lopes, que representou o Ministério Público (MP) nessa audiência, chegou a pedir a manutenção das sentenças no início do julgamento.
Mas o desembargador Edison Brandão pediu “vistas” porque queria mais tempo para analisar o pedido do advogado Eliezer Pereira Martins, que defende os policiais militares. Por esse motivo, ele não deu seu voto. Também não votaram os desembargadores Roberto Porto, relator do julgamento, e Camilo Léllis, o revisor. Diante disso, a sessão foi suspensa para ser retomada somente no ano que vem.
Segundo o Supremo Tribunal Federal (STF) as condenações dos PMs são definitivas porque sofreram “trânsito em julgado” na última instância da Justiça: não cabendo mais recursos da defesa para que elas possam ser anuladas e os agentes sejam absolvidos.
O que será julgado pelo TJ-SP será somente a dosimetria das penas e depois o cumprimento delas em alguma prisão. Apesar de a defesa ainda puder recorrer futuramente do tempo das penas nas instâncias superiores, os desembargadores podem determinar que sejam expedidos mandados de prisão contra os PMs.
“Como não cabem mais recursos, vão ser expedidas ordens de prisões. O TJ, por exemplo, poderia decidir sobre mandados de prisão. O mandado de prisão é expedido quando não tem mais recurso”, disse ao g1 o jurista Wálter Fanganiello Maierovitch.
A defesa dos PMs tenta a redução das penas deles para algo em torno de 12 anos de reclusão, como ocorre em homicídios simples. E quer que as condenações sejam cumpridas nas casas de seus clientes, como prisão domiciliar. A alegação é a de que não há vagas suficientes no Presídio Romão Gomes, que é da Polícia Militar e fica na Zona Norte da capital, para acomodar todos os agentes condenados.
Eliezer ainda sugeriu que o processo volte para a primeira instância da Justiça para que as penas sejam revistas de acordo com as punições estabelecidas pela Justiça Militar. Fontes do g1 discordam dessa hipótese porque casos de homicídios cometidos por policiais são julgados pela Justiça comum.
Entre 2013 e 2014, a Justiça paulista fez cinco júris populares e condenou, ao todo, 74 policiais militares pelos assassinatos de 77 detentos. A defesa dos PMs alegou que eles atiraram em legítima defesa depois de serem atacados por detentos com armas de fogo e facas que queriam fugir. Os outros 34 presos teriam sido mortos pelos próprios companheiros de cela.
Os PMs foram punidos com penas que variam de 48 anos a 624 anos de prisão. Pela lei brasileira, ninguém pode ficar preso mais de 40 anos por um mesmo crime. Veja abaixo quando ocorreram o julgamentos e as respectivas condenações:
- 21 de abril de 2013: 23 PMs condenados a 156 anos de prisão cada um deles por 13 mortes no primeiro andar ou segundo pavimento do Carandiru;
- 3 de agosto de 2013: 25 PMs condenados a 624 anos por 52 mortes no segundo andar, o terceiro pavimento;
- 9 dezembro de 2014: 1 PM condenado a 324 anos por 52 mortes no segundo andar, o terceiro pavimento;
- 25 de abril de 2014: 15 PMs condenados a 48 anos por 4 mortes no 3 andar, o quarto pavimento;
- 19 de março de 2014: 10 PMs condenados , sendo 9 deles a 96 anos e 1 a 104 anos por 8 mortes no 4 andar
Dos agentes condenados, cinco morreram e atualmente 69 deles continuam vivos. Mais de 30 anos depois, ninguém foi preso.
A suspensão do julgamento e a retomada dele depois não levará ao risco de prescrição das condenações, segundo o desembargador Edison Brandão. “Não há qualquer risco de prescrição”, disse o magistrado durante julgamento acompanhado virtualmente por jornalistas e também por oficiais da PM e outros advogados alheios ao caso.
O TJ vetou, no entanto, o uso e divulgação de imagens e áudios da sessão.
Perdão da pena ou anistia aos PMs
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Apesar da garantia de que não haverá prescrição das penas dos PMs condenados, fontes do g1 temem a possibilidade de que a defesa dos PMs condenados peça ao presidente Jair Bolsonaro (PL) o perdão deles para que não sejam presos. Uma das hipóteses seria por meio do decreto da “graça”, que não anularia a condenações, mas impediria o cumprimento das penas, por exemplo. Bolsonaro fica no cargo até o final deste ano.
Em agosto, a Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados aprovou um projeto que anistia os policiais militares processados ou punidos pela atuação no Massacre do Carandiru.
O texto, do deputado Capitão Augusto (PL-SP), ainda será votado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Casa antes de seguir para o plenário.
O parlamentar argumentou que não há ?respaldo constitucional para a condenação desses profissionais sem elementos individualizados que apontem a relação entre os fatos delituosos e a autoria?.
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Trâmite jurídico
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Para o Ministério Público os policiais executaram detentos que já estavam rendidos. Os PMs alegaram ter atirado em legítima defesa para se proteger dos detentos, que segundo eles, queriam fugir e estavam armados com revólveres e facas e os ameaçavam. Vinte e dois policiais ficaram feridos na ação, mas nenhum deles morreu.
O ministro Luís Roberto Barroso, do STF, reconheceu, no último dia 17 de novembro, o trânsito em julgado de duas decisões que mantiveram a sentença do Superior Tribunal de Justiça sobre o Massacre do Carandiru. Em 2021, o STJ havia restabelecido as decisões dos julgamentos do caso que tinham condenado os policiais pelos homicídios dos presos.
Antes, em 2018, o Tribunal de Justiça de São Paulo tinha anulado todos os cinco julgamentos dos PMs no caso do Carandiru. Os desembargadores da 4ª Câmara Criminal do órgão alegaram que os jurados condenaram os agentes em desacordo com as provas do processo, determinando novos júris.
À época, Camilo Léllis e Edison Brandão haviam votado pela anulação dos júris do e determinaram que novos julgamentos fossem feitos. Ivan Sartori, outro desembargador, tinha sugerido a absolvição dos PMs, mas foi voto vencido. Ele se aposentou e foi substituído por Roberto Porto. Camilo e Edison continuam em seus cargos.
O g1 não conseguiu localizar os desembargadores e o procurador para comentarem o assunto. O promotor Márcio Friggi, que atuou pelo Ministério Público na primeira instância, não quis falar sobre o caso.
Eliezer não foi encontrado. Procurado em outras ocasiões para comentar o assunto, o advogado dos PMs condenados havia dito que preferia se referir ao caso como “contenção do Carandiru” em vez de “massacre”.
?Os soldados pegaram em armas para cumprir as ordens superiores. Eu atribuo a condenação deles nos cinco júris a uma estratégia do MP de responsabilizar quem estava na ação, sem nenhuma individualização de condutas, poupando quem ordenou a ação?, falou o advogado numa das ocasiões.
Sobreviventes do massacre
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Apesar dessas tentativas da defesa, especialistas em direito disseram à reportagem que tais pedidos acima podem ser ignorados pelo TJ. O motivo é que eles já teriam sido analisados antes por STJ e STF. E pela lei, órgãos inferiores da Justiça não podem mudar decisões de instâncias superiores.
“O que o MP aguarda é que sejam mantidas as penas que foram definidas nas sessões de julgamento. Qualquer pedido que não se refira à dosimetria da pena não deve ser reapreciado, pois isso já foi definido pelo STJ e STF”, disse ao g1o promotor Márcio Friggi, que acusou os PMs pelos crimes e participou dos julgamentos que condenaram os agentes.
?Ouvimos muitos disparos de metralhadoras, disparos e ações dos próprios policiais, pegando os estiletes dos egressos e matando a punhalada, a estiletada, os presos que estavam sob a tutela do Estado?, contou à reportagem Luiz Paulino, ex-detento e sobrevivente do Massacre do Carandiru.
Comandante da PM foi condenado, absolvido e morto
Em três décadas ocorreram seis julgamentos do Massacre do Carandiru. No primeiro deles, o tenente-coronel Ubiratan Guimarães, comandante das tropas da Polícia Militar que invadiu a Casa de Detenção, chegou a ser condenado pela Justiça, em 2001, a 632 anos de prisão pelos assassinatos de 102 presos.
Nenhuma autoridade da Secretaria da Segurança Pública (SSP) ou do governo paulista foi responsabilizada pelas mortes no Carandiru. Segundo o MP, a ordem para invadir partiu do coronel Ubiratan.
Em 2006, no entanto, Ubiratan se tornou deputado estadual pelo PTB e passou a ter foro privilegiado. Julgado naquele ano pelo Tribunal de Justiça (TJ) em São Paulo, ele foi absolvido. Os magistrados consideraram que o então PM não participou da ação.
Ubiratan foi assassinado em 2006, dentro do seu apartamento. Uma namorada dele foi acusada de envolvimento no crime, mas foi absolvida pela Justiça.
Fonte G1 Brasília