Um dos advogados que representam Jair Bolsonaro, Paulo Cunha Bueno, terminou sua manifestação no segundo dia de julgamento da suposta trama golpista no Supremo Tribunal Federal (STF) fazendo alusão a um escândalo que marcou a França na passagem do século 19 para o 20, o caso Dreyfus, para argumentar que o ex-presidente estaria sendo vítima de um processo “político”.
Bueno comparou o andamento do caso sobre a suposta tentativa de golpe de Estado após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2022 com o que chamou de uma “versão brasileira e atualizada do emblemático caso Dreyfus”, enquanto defendia que “faltam elementos que possam imputar ao presidente Jair Bolsonaro os delitos que lhe são direcionados na denúncia”.
O filho mais velho de Bolsonaro, Flávio, fez uma menção ao mesmo caso horas antes, na noite de terça-feira (2/9).
Em suas redes sociais, ele escreveu: “Jair Bolsonaro é o novo Caso Dreyfus, um dos maiores escândalos de erro judiciário no mundo”. “A História vai colocar os perseguidores em seu devido lugar”, acrescentou.
A historiadora Lilia Schwarcz criticou a comparação, argumentando que o processo contra Bolsonaro é baseado em provas e que o pano de fundo do escândalo da França era bem diferente daquele do Brasil atual.
O que foi o caso Dreyfus
Em 1894, após julgamento em um tribunal militar feito a portas fechadas, o capitão Alfred Dreyfus foi condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, sob acusação de vender informações secretas aos alemães.
O caso foi uma das maiores crises da Terceira República na França, tendo como pano de fundo a ascensão do antissemitismo na França na época ? Dreyfus era judeu.
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Passaram-se 12 anos até que familiares e apoiadores do capitão de artilharia conseguissem provar que ele tinha sido usado como bode expiatório e que as provas apresentadas contra ele eram falsas.
Eles também conseguiram chegar no nome do verdadeiro culpado: o comandante Charles-Ferdinand Walsin Esterhazy.
Duas contra-investigações foram lançadas na época, uma pela família de Dreyfus e outra pelo tenente-coronel Picquart, do serviço de inteligência militar francês.
Em silêncio, eles investigaram e coletaram informações sobre o caso, que depois foram reveladas em uma campanha para mobilizar a opinião pública organizada pelo irmão de Dreyfus, Mathieu, que também procurou apoio entre intelectuais, jornalistas e artistas.
O escritor Émile Zola foi um dos que abraçou a defesa pública de Dreyfus. Em 1898, publicou uma carta aberta no jornal L’Aurore denunciando a condenação injusta de Dreyfus e o crescente antissemitismo nas Forças Armadas e na sociedade francesas. Chegou a ser processado por difamação e condenado por conta do texto.
O título do artigo, “J’accuse!” (“eu acuso”, em tradução literal), acabou se tornando uma expressão famosa, usada até hoje como sinônimo de uma acusação indignada contra alguma injustiça.
O caso Dreyfus dividiu a sociedade francesa na época, contrapondo os que defendiam o capitão àqueles que acreditavam que ele era culpado.
Em julho de 1906, a Suprema Corte francesa interveio e Alfred Dreyfus foi considerado inocente, readmitido no exército e condecorado com a Legião de Honra.
O caso, porém, abalou profundamente a confiança dos franceses nas suas instituições e na sua justiça.
Historiadora critica comparação
A historiadora Lilia Schwarcz criticou a comparação feita Bueno, afirmando que, ao contrário do caso Dreyfus, o processo contra Jair Bolsonaro “tem tantas provas e documentos comprovando o golpe”.
Ela também destacou o contexto por trás do escândalo francês, “pautado em tensões profundas da sociedade francesa ? especialmente o antissemitismo, a luta entre monarquistas e republicanos e o papel da imprensa na vida pública ? temas que estourariam nas duas guerras mundiais”.
Pontuou ainda que “o caso virou símbolo da luta entre um Estado republicano moderno, laico e baseado em direitos e as forças conservadoras, nacionalistas e clericais”.
Nesse sentido, Schwarcz opina não ver comparação entre os dois episódios porque “Bolsonaro não sofre de preconceito e as provas são todas contra ele”.
“Além do mais, defende justamente valores opostos aos de Dreyfus: é reacionário, radical conservador, defende estado religioso e não é republicano: sempre defendeu ditadura militar.”
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Fonte G1 Brasília