O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) passou a integrar uma seleta lista de chefes de Estado punidos por golpe de Estado ao redor do mundo desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Até então, apenas nove ex-líderes haviam sido condenados por crimes do tipo nos últimos 80 anos.
Na quinta-feira (11), o Supremo Tribunal Federal (STF) condenou Bolsonaro e outros sete réus por tentativa de golpe de Estado, além de outros quatro crimes, impondo ao ex-presidente 27 anos e três meses de prisão.
Com a decisão, Bolsonaro se tornou o primeiro ex-presidente brasileiro condenado por tentativa golpe de Estado. No recorte global do estudo, que abrange o período desde 1946, ele é o décimo chefe de Estado a ser punido por esse tipo de crime, passando a integrar uma lista que inclui ex-mandatários da Bolívia, Grécia, Coreia do Sul, Turquia, Paquistão, Uruguai e Azerbaijão.
Os dados foram compilados pelos pesquisadores Luciano Da Ros, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e Manoel Gehrke, da Universidade de Pisa, no estudo “Convicting Politicians for Corruption: The Politics of Criminal Accountability”. O artigo foi publicado na revista Government & Opposition, da Cambridge University Press.
- O levantamento considera apenas condenações feitas pelas cortes nacionais de cada país, excluindo tribunais internacionais.
- Desde 1946, apenas nove chefes de Estado foram punidos por envolvimento em golpes.
- Para efeito de comparação, o estudo identificou 55 condenações por corrupção entre as décadas de 1940 e 2010.
Para Da Ros, o caso de Bolsonaro pode ser classificado como excepcional. Isso porque o ex-presidente foi condenado por uma tentativa fracassada de golpe. Entre os demais episódios levantados na pesquisa, apenas Surat Huseynov, do Azerbaijão, havia recebido punição semelhante.
Outro ponto que chama a atenção é a rapidez na tramitação do processo. Bolsonaro foi condenado três anos depois da trama golpista ? bem abaixo da média observada nos demais casos. Da Ros ressalta que essa velocidade não significa precipitação do Supremo.
?A punição para golpes geralmente é demorada porque existe um interregno literal. Ou seja, há um novo regime que se afirma por conta de um golpe bem-sucedido que dura, por vezes, décadas. Só depois é que se avaliam as condições políticas para punir os ex-ditadores.?
- No Uruguai, por exemplo, o ex-ditador Juan María Bordaberry só foi condenado 37 anos após o golpe de 1973. Ele morreu em 2011, um ano depois da sentença, enquanto cumpria prisão domiciliar.
- Algo semelhante aconteceu na Turquia. Em 2015, Kenan Evren foi sentenciado à prisão perpétua 34 anos após liderar o golpe de 1980. Ele também morreu no ano seguinte à condenação.
Gehrke afirma que golpes bem-sucedidos são, em regra, mais difíceis de punir. ?Muitas vezes faltam evidências ou pessoas dispostas a fornecê-las, além de uma estrutura institucional independente para investigar?, afirma.
O pesquisador explica ainda que os golpes contra democracias costumam ser menos frequentes do que em contextos autoritários. Isso, segundo ele, ajuda a explicar por que há tantas tentativas e rupturas institucionais, mas tão poucas condenações judiciais ao longo da história.
Veja, a seguir, a lista de chefes de Estado punidos por golpe entre 1946 e 2022.
Apesar de a lista trazer um número relativamente pequeno de condenações, os pesquisadores apontam que isso não significa que apenas esses ex-chefes de Estado tenham sido responsabilizados por seus crimes.
Da Ros lembra que, em diversos casos, ditadores acabaram sendo julgados por outros crimes, como violações dos direitos humanos. O professor afirma ainda que anistias e pactos políticos para encerrar regimes autoritários frequentemente limitaram as possibilidades de responsabilização de golpistas.
Impactos
Segundo os pesquisadores, a decisão do STF representa uma autoafirmação das autoridades civis sobre as militares. Para Luciano Da Ros, ao longo da história do Brasil, elites das Forças Armadas acabaram passando impunes por ataques à democracia.
- Apesar do ineditismo da decisão, os pesquisadores ponderam que ainda é cedo para medir os impactos mais profundos da condenação de Bolsonaro.
- Por outro lado, Da Ros e Gehrke ressaltam que o julgamento representou uma ruptura com o padrão histórico do país.
?Mais do que punir um ex-presidente, o julgamento sanciona negativamente o comportamento de autoridades militares de alta patente envolvidos naquilo que se julgou como uma tentativa de golpe de Estado e abolição do Estado Democrático de Direito?, afirma.
Manoel Gehrke acrescenta afirmando que, em um cenário global de pressões contra regimes democráticos, o caso brasileiro pode servir de referência internacional.
?A democracia brasileira consegue, de certa maneira, melhorar em relação aos anos precedentes. Muitos países que estão nesse mesmo contexto de recuperação enfrentam dificuldades para voltar a ser o que eram antes do início do processo de erosão democrática.?
Atualmente, dois casos de tentativas de golpe de Estado ganharam destaque:
- Em 2022, o então presidente do Peru, Pedro Castillo, tentou aplicar um “autogolpe”.
- No final de 2024, o presidente Yoon Suk Yeol, da Coreia do Sul, decretou lei marcial na tentativa de fechar o Parlamento.
- Tanto Castillo quanto Yoon acabaram presos e perderam seus cargos. Ambos respondem a processos na Justiça.
Gehrke lembra que, em diversos países, tentativas de golpe acabaram sendo punidas por meio de impeachment. Para ele, isso demonstra que as respostas a ataques à democracia nem sempre partem do Judiciário, mas podem vir do Congresso.
?Em muitos casos há reações de outros poderes ou prisões temporárias, mas que não resultam em condenação. Isso pode ocorrer por falta de autonomia das instituições de justiça ou por acordos e iniciativas políticas voltadas à acomodação entre as forças políticas.?
Corrupção e arbitrariedade
Embora condenações por golpe sejam raras, o estudo mostra um crescimento expressivo nas ações contra ex-chefes de governo por corrupção, especialmente a partir dos anos 2000.
- Segundo Luciano Da Ros, esse movimento está ligado à difusão de normas internacionais anticorrupção e ao aumento de expectativas democráticas nas últimas décadas.
- Junto a isso está a alternância no poder, que ajudou a fortalecer os sistemas judiciais em vários países.
?Mas é importante dizer que não existe um conjunto idêntico de causas para todas as condenações em todos os países do mundo. As combinações de fatores que produzem esses resultados nem sempre são iguais?, explica Da Ros.
Manoel Gehrke afirma que, em contrapartida, punições arbitrárias a ex-líderes ? como exílio, prisões sem julgamento ou execuções ? se tornaram menos comuns nas últimas décadas.
O levantamento feito pelos pesquisadores aponta que a probabilidade de um ex-chefe de Estado ser punido dessa forma caiu de 30% entre 1960 e 1980 para 12% entre 2000 e 2015.
?Países mais autoritários, normalmente, punem os ex-líderes de maneira mais arbitrária?, diz.
Casos de corrupção, no entanto, costumam ter maior chance de reversão em instâncias superiores, segundo os pesquisadores.
- Em um novo levantamento, eles identificaram 32 episódios em que condenações foram anuladas por cortes supremas ou tribunais de apelação, sendo 25 por corrupção e sete por outros crimes.
- Um exemplo é o do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O petista chegou a ser preso após a Operação Lava Jato, mas teve a condenação anulada pelo STF em 2021.
- Os dados estão no artigo ?An Institutional Fail-Safe? How the Gap in Judicial Independence Between High and Low Courts Explains the Reversal of Corruption Convictions of Former Heads of Government?, publicado na revista Public Integrity.
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Fonte G1 Brasília