Alvo de buscas e de apreensão do celular nesta sexta-feira (12) no caso das joias sauditas, o capitão de corveta da reserva da Marinha Marcelo da Silva Vieira era o chefe do setor que recebia e classificava presentes enviados ao presidente da República durante o mandato de Jair Bolsonaro (PL).
Vieira foi acionado pelo braço direito de Bolsonaro, tenente-coronel do Exército Mauro Cid, para assinar um documento destinado à Receita Federal, que havia apreendido um conjunto milionário de joias entregues pela Arábia Saudita a uma comitiva do governo brasileiro em outubro de 2021.
O objetivo desse documento era resgatar as joias da alfândega às vésperas da saída de Bolsonaro do Brasil.
Em depoimento anterior à PF, entretanto, Vieira disse que se negou a fazê-lo, argumentando que não cabia ao órgão chefiado por ele ? o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência da República (GADH) ? fazer aquele tipo de solicitação à Receita Federal.
Vieira disse também que teve de explicar por telefone ao próprio ex-presidente da República por que não poderia assinar o documento, durante uma ligação em 27 de dezembro ? poucos dias antes de Bolsonaro deixar o poder.
“Mauro Cid colocou a ligação no modo viva-voz e pediu ao declarante para que explicasse ao Presidente da República essa situação e por que não poderia assinar”, afirmou Vieira à Polícia Federal.
O militar acrescentou que deu explicações técnicas sobre a impossibilidade e que Bolsonaro disse “ok, obrigado.”
Como mostram outros depoimentos e documentos entregues à PF, quem acabou assinando o ofício endereçado à Receita Federal foi o próprio tenente-coronel Mauro Cid. O ofício pedia a “incorporação” das joias retidas na alfândega. Ao longo dos dias que se seguiram, no entanto, o quadro técnico da Receita concluiu que não poderia atender a solicitação, já que a Ajudância de Ordens não era o órgão correto para pedir a incorporação de um item retido. Esse tipo de procedimento ? chamado de ?incorporação?, no jargão técnico da Receita ? só pode ser realizado para bens com destinação pública.
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Outro telefonema com Cid
No dia seguinte, 28 de dezembro ? mesmo dia em que Cid enviou diretamente o ofício à Receita para a liberação do conjunto milionário ?, Vieira falou novamente com braço direito do ex-presidente pelo telefone.
Nessa outra ligação, Cid informou a Vieira que no dia seguinte, 29 de dezembro, chegariam presentes destinados ao presidente da República e que ele, Cid, encaminharia informações ?por meio eletrônico, inclusive o formulário de encaminhamento e respectivas fotos, para que fossem tratados pelo GADH, pois o presente físico seria entregue ao seu titular? ? nesse caso, o presidente da República.
Ainda segundo o depoimento de Vieira, o fato de o presente físico ser ?entregue ao seu titular? o fez acreditar que o presente seria verificado como ?parte integrante do acervo privado presidencial?.
Era função do GADH determinar se um bem recebido iria para o acervo público ou privado do presidente.
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Vieria diz que, apesar da ligação no dia 28, nos dias subsequentes — 29 e 30 de dezembro — Mauro Cid não deu retorno sobre os presentes.
No dia 29 de dezembro, um sargento da Marinha chegou a ser enviado ao aeroporto de Guarulhos (SP) para retirar as joias, o que não aconteceu. As joias permaneceram apreendidas na alfândega.
Entenda abaixo qual seria o trâmite correto para a classificação de um presente:
Até o final de 2022, todos os presentes endereçados ao presidente eram encaminhados para o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica (GADH) do Gabinete Pessoal do Presidente da República.
- Cabia, então, ao GADH cadastrar os itens recebidos em um sistema, o InfoAP (Sistema de Informação de Acervo Presidencial) ? o que era feito independentemente da natureza jurídica, pública ou privada dos itens.
- Depois, o corpo técnico do GADH definia se determinado presente integraria o acervo público ou o acervo privado do presidente.
- Não há, na legislação, critérios específicos para definir o que seria um item de “natureza personalíssima”, ficando então à cargo da coordenação do GADH definir presentes privados a partir dessa classificação.
- Depois de determinado item ser classificado como privado, ele deveria ser encaminhado para uma “reserva técnica” ? e não para as mãos do presidente ?, onde ficaria até o fim do mandato.
- Apenas ao final do mandato, um item classificado como privado poderia sair da “reserva técnica” por solicitação do presidente.
Não caberia, portanto, a ninguém da Ajudância de Ordens definir se as joias retidas na alfândega eram um presente “pessoal” do presidente, isso deveria ter sido feito pelos integrantes do GADH, após a chegada dos itens físicos — o que, no caso das joias sauditas retidas, nunca chegou a acontecer.
Também não caberia a ninguém da Ajudância de Ordens entregar as joias diretamente nas mãos de Bolsonaro antes da análise do GADH.
Fonte G1 Brasília