O Ministério da Saúde incinerou mais de 39 milhões de doses de vacinas que passaram da validade entre 2019 e 2022. Entre elas, estão mais de 3 milhões de doses da vacina pentavalente, que está em falta em postos de saúde desde 2019 por problemas de abastecimento em todo o mundo.
Segundo os dados fornecidos via Lei de Acesso à Informação, foram incinerados 3.884.309 de frascos da vacina pentavalente com uma dose cada. A vacina protege contra tétano, coqueluche, difteria, hepatite B e contra uma bactéria que causa infecções no nariz, na meninge e na garganta.
Já da vacina dupla viral, que protege contra sarampo e rubéola, foram queimados mais de um milhão de frascos com 10 doses cada, ou seja, 10 milhões de doses deixaram de ser aplicadas. A imunização contra a hepatite B perdeu 5 milhões de doses.
Veja as vacinas com mais frascos destruídos:
- Vacina Pentavalente (1 dose): 3.884.309
- Vacina Dupla Viral (sarampo e rubéola) (10 doses): 1.015.908
- Vacina contra hepatite B (10 doses): 596.860
- Vacina BCG (20 doses): 497.830
- Vacina Tríplice Viral (5 doses): 321.284
R$ 170 milhões de prejuízo
No total, o custo só com a perda das vacinas foi de R$ 170 milhões – o gasto do governo federal é ainda maior, porque há despesa para se fazer a gestão do estoque e também para incinerá-lo.
O valor representa quase 10 vezes o orçamento previsto para o combate à tuberculose no país, que é de R$ 13 milhões para este ano. A proteção contra a doença envolve a vacina BCG, da qual o ministério destruiu 9 milhões de doses. No ano passado, o ministério teve de reduzir o número de doses enviadas aos estados por problemas no estoque.
Só no caso pentavalente, a demanda do Brasil é de 800 mil doses por mês, mas “o abastecimento está parcialmente suspenso desde julho de 2019 porque os lotes foram reprovados no teste de qualidade”, conforme registra o ministério em sua página. O estoque incinerado poderia ter abastecido toda a necessidade do país por mais de 4 meses.
A pasta aponta que já solicitou a reposição do fornecimento da pentavalente à Organização Pan-Americana da Saúde, braço da Organização Mundial da Saúde nas Américas, mas “não há disponibilidade imediata da vacina pentavalente no mundo”.
Perdas prosseguem
As perdas continuam acontecendo em 2023. Em janeiro, o ministério realizou uma nova incineração, desta vez de cerca de 6 milhões de doses, a maioria contra a Covid-19.
Elas não foram renegociadas a tempo com as empresas fornecedoras – o Ministério da Saúde tem um prazo estabelecido em contrato para solicitar trocas de lotes de vacina a partir de sua demanda para, por exemplo, contemplar mais vacinas pediátricas em relação às doses adultas.
“Já identificamos alguns contratos em que ainda conseguimos fazer trocas. Há previsão que, antes do prazo de expiração do contrato, posso trocar por outro produto com um prazo maior, inclusive no caso de algumas vacinas”, disse Ethel Maciel, secretária de Vigilância em Saúde e Ambiente, a pasta responsável pela gestão do Programa Nacional de Imunizações.
O Ministério da Saúde trabalha atualmente na elaboração de um plano chamado de “Estoque Crítico”, que consiste no levantamento de todos os itens com vencimento até dezembro de 2023.
O objetivo é evitar ao máximo perdas por expiração de validade. A pasta já anunciou que vai começar a distribuir medicamentos que estão perto de perder a validade.
‘Movimento antivacina’ é fator
“Nós temos que ter reserva estratégica, e acontece de termos perdas de reserva técnica”, disse a secretária sobre eventuais perdas que acontecem durante o processo de manuseio e transporte das vacinas.
“Mas devemos estar sempre distribuindo [as vacinas], não podemos manter em estoque. Em alguns casos específicos de o estado ou município não ter condições de fazer o armazenamento o armazenamento, podemos ficar. Mas não é o que está acontecendo”, explica Ethel.
Segundo a secretária, as perdas só serão evitadas com a adesão da população às vacinas. “Infelizmente esse movimento negacionista antivacina, que ganhou ainda mais força durante a pandemia, afetou toda a vacinação”, disse. “Não houve estímulo pra vacinação, então as vacinas ficaram lá paradas, não foram distribuídas para os municípios.”
O processo não é simples, já que ao menos desde 2016 o país não consegue atingir a meta de cobertura vacinal de 95% para a maioria das vacinas.
A cobertura vacinal contra a Hepatite B, por exemplo, chegou a superar o público-alvo esperado para o ano de 2016, mas caiu drasticamente até chegar a 71% em 2021. No ano passado, apresentou leve recuperação e chegou a 77% da população alvo.
No caso da pentavalente, a cobertura vacinal no período oscilou entre 70,76% e 77,86% – índices menores do que todos os registrados nos anos anteriores, entre 2013 e 2018.
Hesitação vacinal
O presidente da Sociedade de Infectologia do Distrito Federal, José David Urbaez, diz que os números são um “certificado de má prática, de incompetência, de desmanche” da rede. Ele destaca que as perdas são inevitáveis, mas não na escala observada, e também alerta para o problema da chamada hesitação vacinal.
“O Brasil não tinha hesitação vacinal como um problema tão importante, mas no momento em que se começa a colocar uma quantidade de malefícios das vacinas, isso é muito sensível e aí você tem impacto na procura. O problema fundamental é falta de procura, por uma campanha maciça anti-vacina, que chegou ao cúmulo na Covid”, destaca ele.
Urbaez aponta que os alertas para a queda na cobertura vacinal no fim de 2022 podem ter colaborado para uma retomada da procura desde então, mas índices que ainda permanecem baixos preocupam.
“As vacinas funcionam como a da Covid, uma imunidade coletiva para fazer uma barreira que protege a população, inclusive a que não pode receber vacina. Mas sem a cobertura adequada não vai se chegar a essa imunização”, explica.
Atritos com estados
Urbaez também critica o que chama de desagregação do programa, com aumento nos problemas de interlocução com estados e municípios. Em um sistema de saúde complexo como o SUS, a precisão de informações é um processo fundamental para gestão de estoques. O tema também está no radar do ministério.
“Eu não consigo saber exatamente o que está acontecendo lá na ponta. Quando eu trabalho com os conselhos [de saúde estaduais e municipais], eu consigo planejar melhor. Houve uma desarticulação, isso foi claro, e acredito que essa desestruturação de alinhamento dificultou a gestão. Não tem uma explicação do porquê falta vacina [no posto] e tem no estoque”, disse Ethel.
“Precisamos recuperar a confiança dos estados e municípios de que vamos distribuir as vacinas de acordo com as demandas”, afirmou ela.
Fonte G1 Brasília